O CANTO DOS POETAS
Vamos tentar dar a este blogue uma
certa versatilidade. Em volta de um núcleo coerente, centrado em Setúbal e nos
seus poetas populares, tentaremos reunir cultivadores de outras formas de arte
como o conto, a fotografia e a crónica.
Pusemos em prática esta iniciativa
em pleno verão, sabendo que muitos dos nossos possíveis colaboradores estão a
gozar merecidas férias. Por outro lado, uma parte dos associados do Núcleo de
Poesia de Setúbal não tem acesso à Internet. Esses sócios continuarão a poder
dispor do boletim O Canto dos Poetas, que deverá retomar a sua publicação
periódica ainda durante este ano, e poderão participar em todos os eventos
constantes do nosso plano de atividades. O blogue nasceu para complementar o
que já se vinha fazendo. Contamos que quem o lê o divulgue junto de quem não pode
ou não sabe utilizar o computador.
Quem quiser publicar os seus
trabalhos no blogue deverá enviá-los para quebra.lemes@gmail.com
António Trabulo
APRENDAMOS COM GUERRA JUNQUEIRO
MORENA
Não negues, confessa Tu és a mais rara
Que tens
certa pena De todas as rosas;
Que as mais
raparigas E as coisas mais raras
Te chamem
morena São mais preciosas.
Pois eu não
gostava, Há rosas dobradas
Parece-me a
mim, E há-as singelas;
De ver o teu
rosto Mas são todas elas
Da cor do
jasmim. Azuis, amarelas,
Da cor de açucenas,
Eu não… Mas
enfim De muita outra cor;
É fraca a
razão Mas rosas morenas,
Pois pouco
te importa Só tu, linda flor.
Que eu goste
ou que não.
E olha que foram
Mas olha as
violetas Morenas e bem
Que, sendo
umas pretas, As moças mais lindas
O cheiro que
têm! De Jerusalém.
Vê lá que
seria E a Virgem Maria
Se Deus as
fizesse Não sei... mas seria
Morenas
também! Morena também.
Moreno era
Cristo.
Vê lá depois
disto
Se ainda
tens pena
Que as mais
raparigas
Te chamam
morena!
OS NOSSOS POETAS
OS NOSSOS POETAS
DIVAGANDO
Tenho esta coluna em branco
Que preciso preencher,
Mas, para vos falar franco,
Não tenho nada a dizer.
Mas podeis ficar tranquilos
Porque os espaços ocos
Podem conter muitos quilos
De interesse para poucos.
Quando as ideias úteis
Não ocorrem ao escritor
Escreve-se coisas fúteis
E nunca faltam leitores.
Nunca se viu tanta gente
A botar palavra escrita,
Cada um diz o que sente
E a liberdade é bonita.
Muito se diz que a cultura
É remédio para tudo,
Mas nenhuma criatura
Vive apenas dum canudo
O belo bife-a-cavalo
Não brota duma caneta,
Alguém tem que amargá-lo
Para que chegue à vedeta.
Há heróis cá nesta Terra
Que, por bitola diferente,
São criminosos de guerra
Ou algo mais deprimente
.
Escrevendo verso a verso
Cheguei ao fim da coluna
Num "converso e desconverso"
Sem dizer coisa nenhuma.
Francisco Pratas
ARRÁBIDA
ARRÁBIDA
Arrábida,
Terra de
ciprestes
Apontados
aos céus
Como que a espingardear
Fantasmas
celestes,
Muito para
lá do além.
Verde…
Sempre
verde…
Mais verde
Do que o
verde
Da verde
Esperança!
O murmúrio
dos teus ventos
Que
perturbam os raios silentes
Das noites
de luar.
Há momentos
Que são
alimentos
Dos sorrisos
duma criança.
Tuas sombras
amenas
São agasalho
do Sol forte.
Os teus
zimbros
São melenas
Na fronte
duma donzela,
Verde,
Verde,
Cada vez
mais verde!
Sempre mais
bela!
Só tu Arrábida!...
Henrique Mateus
A TRAINEIRA NA PESCA
A companha está avisada,
A traineira sai a qualquer hora!
Sairá de tarde ou de madrugada,
Busca pesqueiro barra fora!
Deus nos dê uma boa pescaria,
Alámos a rede com esperança!
A nossa vida é esta dia a dia,
E quem trabalha sempre alcança!
Está pintada de azul cor do mar,
Estão começando a pescaria!
O arrais grita; é tempo de pescar,
Pescamos toda a noite até vir o dia!
Hoje os lances fora fracos,
O peixe anda muito arredio!
Vamos saber dos outros barcos,
O pescado fundeia, está frio!
Foi muito fraca hoje a pescaria,
Vamos chamar a enviada!
Pescamos então mais um dia,
E iremos com a traineira carregada!
HISTÓRIAS DE MÉDICOS E DE DOENTES
Já lá vão anos. Aconteceu no Serviço 10 do
Hospital de S. José. De manhã, ao entrar para o trabalho, deparei com uma
gritaria invulgar.
Numa unidade hospitalar que recebia uma
grande parte dos acidentados graves de Lisboa e do sul do País, assistia-se a
muita desgraça. Dessa vez, os gritos não eram de dor, mas de raiva.
Aproximei-me. O Enfermeiro-chefe António
Trindade, um excelente profissional, bem contra o seu costume parecia inibido.
Mantinha os ombros descaídos e o rosto baixo, como se estivesse à espera que o
vendaval passasse, sem nada dizer que pudesse piorar ainda mais a situação.
Tinham trocado os corpos de dois doentes
falecidos. Como todos os acidentados eram sujeitos a autópsia, a culpa tanto
podia ser nossa como do Instituto de Medicina Legal, mas o barulho era ali.
Uma das famílias recebera o seu defunto e
apressara-se a enterrá-lo, sem que ninguém se lembrasse de o espreitar. Horas
depois, e a muitos quilómetros de distância, a outra família, ao prestar as
honras fúnebres, quis olhar pela derradeira vez o rosto do morto querido.
Abriram o caixão. Não conheciam aquela cara de lado nenhum.
António Trabulo
António Trabulo