O CANTO DOS POETAS
FLORBELA ESPANCA
(Vila Viçosa, 1894, Matosinhos, 1930)
O Canto dos Poetas saúda a entrada das senhoras no bloque. Já
tardavam. Para as homenagear, considerámos adequado lembrar Florbela Espanca.
Alentejana arrebatada, Florbela atravessou a vida com inquietação
e escolheu a morte prematura aos 36 anos. O acidente que, em 1927, vitimou o
seu irmão Apeles, aviador da Marinha, terá fragilizado ainda mais o solo que
pisava.
Apeles é um nome estranho entre nós. O pai chamou-o assim em
homenagem ao pintor grego escolhido por Alexandre Magno para perpetuar a sua
imagem.
Apeles é o terceiro da esquerda, em pé
Flor Bela e Apeles eram filhos ilegítimos de João Maria
Espanca e de Antónia da Conceição Lobo. O pai começou por ser sapateiro mas
fez-se antiquário, negociante de cabedais, fotógrafo e empresário de cinema. As
crianças foram criadas na casa paterna, tendo a mulher legítima de João Espanca
por madrinha.
Florbela Espanca foi das primeiras raparigas portuguesas a
frequentar um Liceu. Começou a escrever versos na adolescência e assinou o seu
primeiro conto aos treze anos. Casou, pela primeira vez, em 1913. Colaborou em
algumas revistas de Évora e matriculou-se em Direito, na Universidade de
Lisboa. Não foi longe no estudo universitário. Publicou a sua primeira obra, o
volume de sonetos Livro de Mágoas em
1919.
Divorciou-se, casou, e voltou a divorciar-se e a casar. A sua
depressão evoluía. Encontrou dificuldades em publicar os seus poemas. Até a sua
obra-prima Charneca em Flor tardou a
encontrar editor. O seu último marido foi um médico. Sabe-se que santos da casa
não fazem milagres mas, ao tempo, não existiam medicamentos eficazes para
combater o seu mal. Depois de várias tentativas, Florbela Espanca envenenou-se com barbitúricos, no dia do seu 36º aniversário. Diz-se que pediu para lhe colocarem no caixão os
restos do avião em que morreu o seu irmão Apeles.
Há quem atribua à reação de Florbela com Apeles um caráter incestuoso. A acusação carece de fundamento.
Há quem atribua à reação de Florbela com Apeles um caráter incestuoso. A acusação carece de fundamento.
Florbela Espanca deixou uma obra variada que inclui poesia,
contos e um diário. Dos seus versos sobressaem o individualismo e a solidão,
tantas vezes ligados na vida. A poetisa não se prende a analisar a política nem
os problemas sociais do seu País. Canta, acima de tudo, a paixão. Cultivou o
soneto, técnica poética de estranha longevidade, que terá nascido na Sicília no
século XIII e foi aperfeiçoada por Petrarca. Apesar das regras que o
espartilham, o soneto teve força bastante para atravessar todos os movimentos literários
conhecidos.
Escolhi o poema Saudades
para ilustrar este texto. Poderia ter optado por muitos outros.
SAUDADES
Saudades! Sim… talvez… e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, não nos importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!
Quantas vezes, Amor, já me esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos se quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!
OS NOSSOS POETAS
UM POEMA TE ESCREVI
Esta noite, eu
não dormi,
Minha mente não
me deixou;
Um Poema eu te
escrevi,
Meu coração mo
ditou.
A pensar como escrever,
Um Poema só
para ti,
A saudade
veio-me dizer!
Esta noite não
dormi…
Vivendo na
solidão,
Meu Amor, por
ti senti!
Estando triste,
meu coração,
Um Poema te
escrevi!
De tanto em ti
pensar,
O meu sono se
ausentou;
E sem dormir
fui ficar,
A mente não me
deixou!
Nesta luta sem
dormir,
Meu sentido
viajou…
E um Poema… de
sentir,
Meu coração mo
ditou!
Mavilde Baião
SOU ALMA, SOU FLOR, SOU VENTO
No peito guardo
a lembrança
Do mundo que
nunca vi,
Dessa mágoa tão
profunda,
de um amor que
não vivi.
Caminho por
entre as águas
Profundas da
solidão,
No cabelo
guardo o toque
Do calor da tua
mão.
Sou alma, sou
flor, sou vento,
Sou canção, sou
pensamento,
Sou lembrança
de um momento,
Sou palavra,
sou tormento.
Na varanda
espero a noite
Que me enche de
saudade,
Não quero mais
lembrar o tempo
Em que vesti a
vaidade.
Este amor de
capa e espada
Que rasga
restos de mim,
Preenche todas
as horas,
Transforma-me
em arlequim.
Perdida em sons
do momento,
Faço deles
minha história,
Perco a noção
do caminho,
Vivo envolta na
memória.
Sou alma, sou
flor, sou vento,
Sou canção, sou
pensamento,
Sou lembrança
de um momento,
Sou palavra,
sou tormento!
Lou Alma
O MEU MAR
Ò Mar revolto
da minha paixão
Do meu sonho de
menina inocente
És aguarela
viva sempre recente
E pedaços de
Amor e muita ilusão
Ò Mar
inquietude da minha alvorada
Demência da
Alma que deseja esquecer
O que outrora
foi já o meu sofrer
Que dir-te-ia
hoje de ti não querer nada
Ò Mar de
encanto nas noites estreladas
Amar-te assim
eu não sei porque o faço
Porque ao meu
ser roubaste um pedaço
Que jaze
desfeito nas tuas ondas prateadas
Ò Mar
irrequieto beijando a areia
Desfalecendo na
praia constantemente
No meu corpo eu
queria ardentemente
Sentir o teu
beijo como fora sereia
Ò Mar de
amargura e de felicidade
De lucidez
amarga e de confusão
Não sentindo
rancor no meu coração
Eu juro amar-te
com fidelidade
Ò Mar que
abraço com o meu olhar
Que és pranto e
dor dentro do peito
Mas diante de
ti eu fico sem jeito
Sem saber a
razão de tanto te amar.
Maria do Mar
EU QUIS
Quis apagar o
Inverno do meu rosto
Para que nele
habitasse a Primavera
Como pétala
amarelecida ao sol posto
Cai a noite e
tudo apenas foi uma quimera
Quis lavar a
alma com água da nascente
Que brota do
meu olhar como caudal
Mas essa água
sem eu saber e de repente
Passa a ser
coisa nenhuma e tão banal
Quis cobrir-me
de salpicos prateados
De maresia que
encontro no meu mar
Mas num pranto
os meus olhos já cansados
São um lago
onde afogo o meu penar
Quis desfazer a
nuvem do pensamento
Levando-a para
longe deste meu ser
Mas algo mais
forte como lamento
Fez na minha
força eu à vida me render
Quis como Jesus
sobre as águas caminhar
E ir mais longe
num Outono indesejado
Nas margens do
meu rio que já foi mar
Caminho sim,
num sonho meu inacabado
Quis que o meu
coração tivesse asas brancas
Para que no meu
peito ele pudesse voar
Mas apesar da
vida ser ela feita de mudanças
Eu quero sim,
que meu coração não vá mudar.
Maria Teresa Palmeira
SETÚBAL DE ONTEM E DE HOJE
FONTE DE PALHAIS
Esta fonte, ou fontanário, situa-se
no final da Avenida Cinco de Outubro, frente ao jardim do Quebedo. A sua
construção data de 1772.
O material empregue na sua construção
é o mármore branco, sendo a sua planta bem delineada; são salientes os relevos
constituídos pelo escudo das armas de Portugal, com arabescos, troncos, folhas,
flores e algumas bagas de loureiro, encimada pela coroa imperial com cruz.
Tem bebedouro para animais e duas
carrancas como bicas.
Consta que inicialmente as suas águas
vinham canalizadas duma nascente situada um pouco acima do caminho-de-ferro,
mais precisamente nos terrenos onde hoje existe a Travessa dos Cobertos, terra
baldia na altura, embora dentro do recinto amuralhado. Tinham fama de ser águas
milagrosas.
Esta fonte também era conhecida como
chafariz de S. Bernardo, por nas imediações existir o convento da freiras
Bernardas. Ao longo da sua história também foi conhecida por fonte dos Aguadeiros
e por fonte dos Almocreves.
Ainda não há muito tempo a água
deixou de correr pelas bicas desta fonte, ficando seca, abandonada, deixando de
cumprir as funções para que tinha sido criada.
Hoje está cuidada e pelas suas bicas
corre água, embora já não sirva para dessedentar os animais como outrora, mas…
são os pombos que a fruem em pleno, dando-lhe até uma certa graça. A fonte,
agora está linda, enquadrada por canteiros de relva, formando um cantinho
agradável à sombra dos jacarandás. Nas tardes amenas, ali para o lado da
noitinha, parece ainda ouvir-se o bulício dos outros tempos, quando toda a
gente após o dia de trabalho vinha encher a sua bilha de água e tagarelar um
pouco na coscuvilhice, naquele espaço que na altura devia ser um grande
terreiro.
Com a idade, as coisas também morrem,
mas esta fonte ainda não morreu, está bem viva na memória dos mais idosos que
por ali passam, quedando-se saudosos dos tempos da sua juventude, quando ali
vinham refrescar-se na sua água sempre fresquíssima.
Henrique
Mateus
CONTOS DO MUNDO
A CAIXA DE SAPATOS
─ Ai o meu rico homem…
─ lamentava-se a tia Aldina, lavada em lágrimas. Ai o meu rico homem!
Rico nunca fora Zé
Furtado. Era homem de trabalho e havia quem o considerasse o melhor podador da
terra. Vivera melhor que os pobres, mas pouco lhe sobrara. Os pequenos terrenos
que possuía eram os que ele e a mulher tinham herdado. Não bastavam para o sustento
do casal. O Zé e a mulher alugavam os braços à jorna, sempre que havia
oportunidade.
─ Ai o meu rico homem!
A tia Aldina estava
cansada. Quando a voz lhe esmorecia, esforçava-se por gritar. Mulher que se
prezasse devia chorar alto nos funerais dos seus.
O marido não tinha sido
melhor nem pior que os mais da aldeia. Esforçava-se durante a semana mas, aos
sábados, relaxava e passava os fins de tarde na sua pequena adega, situada no
piso térreo da habitação. Era onde estavam as tulhas de cereais. Guardava lá
duas pipas de vinho e um cântaro de azeite. Bebia sozinho e quase às escuras,
sentado num banco de madeira.
O álcool não o punha
alegre. Pelo segundo ou terceiro copo sentia-se eufórico, mas aquilo durava
pouco. Mais um quartilho e dava-lhe para remoer as mágoas. Começava por
analisar cada grande ou pequena frustração da semana que passara, saboreando a
amargura como se fosse mel. Quando o álcool lhe aquecia as veias, obrigava-se a
projetar no ecrã da alma os momentos piores de toda uma vida. Havia três
episódios que nunca faltavam.
Não lhe coubera nada da
herança da tia Maria, que morrera sem descendentes. Ao morrer, andava de mal
com o irmão Joaquim, pai do Zé. Fizera testamento a favor dos filhos do irmão
António. Ainda eram umas terras jeitosas, sem falar da casa… E lá ia mais um
copo, para calar a mágoa.
Poucos anos depois, o
velho Manuel Cantoneiro recusara dar-lhe a filha em casamento.
─ Quem é que aquele
gajo pensava que era? ─ resmungava o Zé. Já está há muito a arder no inferno.
O pior que lhe
acontecera na vida fora não ter sido apurado para a tropa por ser baixo. Quem
era recusado passava por não ser homem inteiro.
─ Sou tão homem como
qualquer um ─ repetia para si próprio.
Percorrida a via-sacra
da amargura, levantava-se, com alguma dificuldade, subia a escada a cambalear e
ia ter com a mulher que se refugiava no extremo da cama, debaixo das mantas,
como se elas a pudessem proteger da tempestade que chegava. Nunca lhe faltavam
pretextos para bater. A tia Aldina era sovada quase todos os sábados. Às vezes,
depois de a espancar, o homem queria sexo.
─ Ai o meu rico homem…
Agora, parecia distante
a brutalidade semanal. Os mortos são vistos sob outra luz. Os defeitos
esbatem-se e as qualidades reluzem. Para Aldina, era como se as pancadas nunca
lhe tivessem doído.
Quando quatro homens
pegaram o modesto caixão aos ombros e o fizeram descer as escadas, os gritos da
viúva subiram de tom. Depois, soluçou durante meia hora e acabou por se calar.
No dia seguinte, no
sótão da casa, as duas netas do finado entretinham-se a brincar. A Marta ia nos
oito anos. Era magra, de rosto fino e tranças ruças. Mais nova, a Lídia tinha a
cara larga e o cabelo escuro cortado curto.
As crianças sempre
imitaram os adultos. As meninas daquele tempo divertiam-se com tachos velhos,
vassouras e bonecas de trapos.
Ao morrer, Zé Furtado
não tinha sapatos apresentáveis. A mulher mandara uma vizinha comprar uns novos
à loja da tia Maria Raquelina, que vendia de tudo. Recomendara-lhe:
─ Não tragas uns caros…
São para usar só uma vez.
As meninas tinham
metido um boneco na caixa de sapatos, com algumas flores de cada lado.
Lamentavam-se à vez:
─ Ai o meu rico homem…