sexta-feira, 21 de setembro de 2012


                    O CANTO DOS POETAS


                      A Poetisa do Sado

                                          
Mariana Angélica de Andrade nasceu em Casa Branca, Sousel, em 11 de Maio de 1840. Era filha de Joaquim António Serrano, poeta, escritor e jornalista do Diário de Notícias e de Francisca Pereira da Silva. Aos 4 anos veio para Setúbal, onde vivia a sua madrinha que a criou e educou. Mariana adoptou de sua madrinha Gertrudes Angélica d’ Andrade os apelidos que usava. Provavelmente, viveu na Rua Nova da Conceição (actual Av. 5 de Outubro), no nº 21.
         Não existem rastos sobre a aprendizagem escolar da poetisa. Contudo, dada a situação do sistema educativo português da altura – 1846-1850 – é natural que Mariana tenha frequentado o ensino privado ou tenha tido uma preceptora, solução que as famílias mais abastadas encontravam para dar alguma instrução às suas filhas. A madrinha de Mariana fazia parte das famílias burguesas da cidade, já que era viúva de um rico proprietário, e foi umas das pessoas que mais contribuiu para a existência e manutenção do Asilo da Infância Desvalida de Setúbal.
       Casou civilmente em 1874 com o escritor, filólogo e poeta António Cândido de Figueiredo com o qual se correspondera durante anos e que estimulou a sua actividade poética. Foi desta troca de correspondência que o amor nasceu entre eles, sendo Cândido de Figueiredo ainda estudante em Coimbra. Depois do casamento foi viver para Lisboa, na Calçada do Duque 13-2º. Teve duas filhas – Rosalinda e Corina. Estas tinham, respectivamente, 7 e 5 anos quando Mariana Angélica faleceu às 3 horas da madrugada, em 14 de Novembro de 1882, aos 42 anos, vítima de tuberculose pulmonar. Foi enterrada no dia 16 de Novembro, às 11 horas da manhã, no Cemitério Ocidental, hoje Cemitério dos Prazeres.
       A morte de Mariana foi noticiada na Gazeta Setubalense, no Diário de Notícias, no Século, no Jornal do Comércio, no Distrito de Viseu, no Jornal Ilustrado, no Jornal da Noite, no Viriato, no Diário de Portugal, no Comércio Português e em outros jornais e revistas onde a poetisa colaborou o que demonstra a consideração, o apreço e a admiração pela mesma.
         O Distrito de Viseu noticiou deste modo a sua morte:
«Era uma senhora muito instruída e prendada. Os formosos versos que publicou em vários jornais deram-lhe o cognome de «A Poetisa do Sado».
        Admiravam a sua obra nomes consagrados na literatura da época, como António Xavier Cordeiro, Gonçalves Crespo, Júlio César Machado, Feliciano Castilho, João Penha Alberto Pimentel, Simões Dias e Gomes de Amorim.
        Mariana Angélica foi uma pessoa culta, conhecedora de Camões, Filinto Elísio, Nicolau Tolentino, Marquesa de Alorna, Publia de Castro, Bocage, Almeida Garrett, Feliciano de Castilho, Alexandre Herculano, Soares dos Passos, Camilo C. Branco, João de Deus, Gomes de Amorim e Simões Dias, Ana Plácido, entre outros. Também conhecia Molière, Victor Hugo e outros autores estrangeiros dos quais traduziu, para português, romances que foram publicados em folhetins em alguns dos jornais e revistas onde colaborou.
       Um dos aspectos que a preocupava era a Educação em geral e a das mulheres em particular, tendo abordado este assunto por várias vezes nas publicações onde colaborava e que foram transcritos por outras publicações da época.
          Tratou temas relacionados com problemas políticos e sociais do seu tempo em muitos dos seus poemas – a guerra, a injustiça, a pobreza, a liberdade – que foram recitados em várias ocasiões, em festas e recitais em Setúbal.Verifica-se na obra poética a sua revolta, a sua insatisfação, a sua mágoa com o facto de ser mulher.
Mariana Angélica d’Andrade começou a escrever muito cedo poesia; o poema “Estações da Vida”, publicado no seu primeiro livro, Murmúrios do Sado, tem a data de 1854.   
A sua primeira obra, Murmúrios do Sado, foi publicada em 1870, em Setúbal, e prefaciada por Cândido de Figueiredo. Esta obra mereceu a atenção do Grémio Literário do Brasil tendo sido lavrado à autora diploma de sócia honorária.
A obra Revérberos do Poente foi publicada postumamente em 1883, no Porto, com prefácio de Gomes de Amorim. Também As Rimas Selectas foram publicadas postumamente em 1917, por Nuno Catarino Cardoso, na antologia Poetisas Portuguesas.
Mariana Andrade também escreveu artigos de opinião e de crítica, contos, fantasias e duas comédias; alguns que estão publicados, outros que deixou inéditos. A comédia As Esporas do Alferes foi estreada em Setúbal em 1870 e representada pelo actor José Romano.
Foi redactora da Gazeta Setubalense e da Grinalda Literária, colaborou no jornal Aspirações, na Voz Feminina (1868-1869), Almanaque de Senhoras (1871), Almanaque de Lembranças (1867) e em periódicos de Lisboa (Gazeta das Salas, 1877), Coimbra e Porto.

                                                                 Anita Vilar


     POESIA E MULHER

                                         Celeste dom da poesia,
                                                       Jóia sem preço, calcada
                                                       Aos pés da turba, que insulta
                                                       As desventuras do génio.

                                                                     Camilo Castelo Branco
   
                           Porque me vens tu arcanjo da poesia,
 Com teu estro de brilho cintilante,
 Com fogo divinal que a fronte queima,
                          Esta alma extasiar?!

Eu sinto-me inspirada!... mas o mundo
Maldiz os sons da lira, afronta o génio
Que procura elevar-se, em asas de oiro,
                          Acima do vulgar!

Com loucos preconceitos ouve os hinos,
- Hinos que não conhece e não entende;-
Vozes d’alma sinceras que condena
                          Por não as compreender!

E mais a escarnece quando sabe
Que vêm d’uma mulher os sons que escuta!
Á vítima inocente nem lhe é dado
                          Prantos deixar correr!

Só pode ser feliz, ou ser querida,
A mulher que em salões pompeia galas,
Os gestos, a maneira, e em mil requebros
                           Sorri-se ternamente!

Que em vasto coração, se o tem acaso,
A muitos pretendentes presta asilo…
E o falso amor que se desata em risos,
                           Reparte largamente!

Mas se odeia a vaidade mentirosa,
Mira outra luz, tem outra senda aberta:
Precisa doutro amor, quer outro brilho
                           Que não há nos salões!

Ama a luz radiante do talento,
Idolatra a poesia, abraça a lira,
E sonha melhor mundo, embora este
                            Lhe roube as ilusões!...

Poesia! Se dás glória eu não a gozo;
Se dás palmas a quem a vida enturvas,
São elas tão exíguas que não chegam
                            A mim pobre mulher!


Que importa!... Se não cinjo verdes louros
Nem possuo os troféus que dás a custo,
Cânticos são riqueza de minha alma,
                             Nem outra glória quer.

Eu sinto-me enlevada quando penso
Em ti, meu terno amor, meu doce encanto.
O mundo que me veja e tenha zelos
                             Desta funda paixão!

Seus risos insensatos não me afligem;
Mas se ele me partisse a pobre lira…
Ai de mim!... também ele aniquilava
                           Meu triste coração!



                                        MISTÉRIOS DO TOUCADOR 

                   

                   Cassilda foi ao baile, e tão formosa
                   Que fez inveja a todas as senhoras;
                   Muito embora gentis, encantadoras,
                   Nenhuma era tão bela e majestosa.

                   Tinha a cútis rosada e cetinosa
                             Tinha no olhar o brilho das auroras,
Tinha as formas perfeitas, sedutoras;
 E ela passava altiva e donairosa.

 De valsas e sorrisos fatigada,
 Assim falou depois com a criada
          A sós, ao toucador vendo as feições:
     
 « Fui rainha do baile! Que patetas
 São os homens!... Recolhe nas gavetas
 Os dentes, o cabelo, os algodões…»





                  SETÚBAL ANTIGA



    OS NOSSOS POETAS


     BANCO DE JARDIM

Sou um banco de jardim
Tão simples que ninguém repara em mim
Estou um pouco esfolado, é certo
E até um pouco encoberto
Mas o que vi e ouvi,
Desde que estou aqui
É tão forte em emoção
Que preciso de partilhar
O que trago no coração
São muitos risos e galhofas
De meninos turbulentos
São muitos gritos e zangas
De adultos quezilentos
E eu sempre calado!
Assisti ao primeiro beijo
De um par apaixonado
E quando anos mais tarde
Ele a pediu em casamento
Estavam mesmo ao meu lado.
Como me lembro desse momento!
Ouço os relatos do futebol,
As queixas dos mal-amados
Confidências de vizinhas
E segredos mal guardados
Há dias fiquei preocupado
Um jovem com ar doente
Sentou-se com uma seringa ao lado
E sem motivo aparente
Delirou, delirou, delirou
E eu ali a ver
Sem nada poder fazer
Ontem uma velhinha,
Que se sentou a descansar
Tirou da sua bolsinha
Meia dúzia de moedas
E começou a suspirar
Eu sofro com estes problemas
E penso cá para mim
Que posso eu fazer
Se sou apenas
Um simples banco de jardim?


Ivone Vilares



            BOCAGE

Bocage, o grande poeta,
Em Setúbal nasceu;
Esse príncipe das letras,
Que em Lisboa faleceu!

A rua que o viu nascer,
Foi Edmond Bartissol,
Dando-lhe a honra de ver
A primeira vez o sol!

Foi a 15 de Setembro,
De 1765, nascido;
E aos 21 de Dezembro
De 1805, falecido!

Manuel Maria Barbosa
Du Bocage; foi registado,
Mas por Elmano Sadino,
Na Nova Arcádia, apelidado!

Esse vate laureado,
Em poesia nunca vencido,
Foi poeta iluminado,
Um satírico esclarecido!

Era oficial marinheiro,
E apesar de pai juiz,
No Santo Ofício e Limoeiro
Teve preso o infeliz!

Sem motivo nem razão,
Nos cárceres foi encerrado,
Mais tarde saiu da prisão,
Do que não fez, perdoado!

Deixou uma obra perfeita
Da mais picante à lírica,
E até esbanjou talento
Em espirituosa satírica!

Eram de rara perfeição
Os seus dotes de sonetista,
Como lesto na intervenção,
Foi um nato repentista!

Deixou-nos obras-primas,
Escrita Maravilhosa,
“Obras completas e Rimas,”
De satírica espirituosa!

O nosso Bocage deixou
Nome ilustre na História,
O povo lhe levantou,
Em honra uma Memória!

Bocage, tu és lembrado,
Por toda a humanidade,
És o “Príncipe Coroado”
Desta bela e nobre Cidade!

                    Luís Francisco Chainho 




     REALISMO

As mensagens de amor
Para gente sem grandeza
Informam o predador
Que ali está mais uma presa.

A História está aí
A dizer-nos que a brandura
É sumo de abacaxi
Que refresca a ditadura.

Os violentos até pagam
Aos mestres em letargia
Para que humildes tragam
Os utentes da coxia.

Nenhum monstro abdica
Da sua monstruosidade
Só porque a presa estica
A sua docilidade.

O primeiro acto do Bem
É combater contra o Mal
E não prostrar o refém
Com cânticos de Natal.

Teorias há aos montes,
Só que a realidade
Mostra que os brutamontes
São os donos da Cidade!

             Francisco Pratas



SENDO DIFERENTES, MAS IGUAIS!

O mundo, um dia achar sabedoria,
Quando então souber compreender,
Nesta vida tudo muda e varia,
Todos os dias estamos a aprender!
  
Na verdade, parecemos todos iguais,
Mas nesta parecença; somos diferentes,
Conquanto há os que se parecem mais,
Pensando até serem os mais inteligentes!

Mas tal como os frutos e as flores,
Que nos podem mais atrair e agradar,
Sendo variadas e lindas suas cores,
Por serem diferentes têm variar!

Assim acontece com a humanidade,
Distinguindo-se pela cor da pele ou raça!
Diferentes, mas sem haver desigualdade,
Atendendo à sua condição de sua graça!
  
 As pessoas, sendo seres especiais,
Seres únicos no conceito da criação,
Será impossível encontra dois iguais,
Aos diferentes daremos mais dedicação!
  
 É nessa desigualdade encontrada,
Que pomos à prova o nosso carinho,
 À humanidade deve ser apresentada,
A obra desenvolvida neste cantinho!

                                                    J. Rodrigues



        OS LIVROS DOS AMIGOS

                       MARIA HELENA






















                                            ACREDITA

          A poesia não nasce dum mito
          tão pouco dum sonho
          tão pouco dum grito.
          Poesia nasceu
          num gesto de dádiva
          nasceu aqui no gesto aberto da minha mão.

                            FAZ ISSO

          Se ao leres meus versos
          conseguires cantar
          canta.
          É fácil o meu poema!
          é como fechar os lábios
          em gesto mimado.
          Se souberes rezar
          reza.
          Une os braços e aperta os laços
          das rosas que caem pelo teu 
          regaço
          Nisso se resumem as palavras
          que não escrevi, as que senti
          no suave encanto
          do que já sonhei
          e não vivi.



OS NOSSOS CONTOS

                        O PEQUENO MALMEQUER

Havia em pequeno malmequer muito pequenino com muitas flores com os olhitos amarelos que vivia num lindo jardim à beira da estrada já perto do bosque dos rouxinóis, onde havia muitas, muitas formigas que tinham o seu formigueiro debaixo do tronco de uma árvore já envelhecida e que andavam muito irrequietas e atarefadas a encher o seu celeiro porque o Inverno se aproximava, ia chover e já não podiam sair de casa.
Uma delas era muito vaidosa e dizia que conseguia carregar sementes muito grandes, maiores e mais pesadas que o seu próprio corpo, e dizia que era ela quem carregava mais para o celeiro.
No meio de tantas centenas destes insectozinhos, eu conhecia bem a laboriosa formiga, que de tão atarefada que andava, muitas vezes nem me dava os bons dias.
Até me parecia uma formiga maior que as outras, talvez por ser fêmea, pois os machos são menores.
Um dia trouxe uma semente de girassol, mas na entrada do formigueiro, depois de renhida luta, veio o cansaço e o desespero! Depois o desalento e por fim a desistência.
A enorme semente não coube na entrada e teve que ficar ali dias e dias, até que a chuva chegou e enterrou a semente na terra arenosa que circundava a entrada do seu celeiro. Depois voltou a chover e a semente germinou, cresceu, cresceu, apanhou mais umas chuvadas na Primavera e ficou enorme.
Estava já uma linda planta, com mais de um metro de altura e cheia de grossas folhas verdes e com muitos botões de flores que brevemente iriam abrir!
E assim foi, eu até me sentia pequenino ao pé dela e também me preocupava com as flores enormes que iriam deixar tristes os meus malmequerzinhos também prestes a abrir.
Chegou o Verão, e era vê-los girar com o sol, todos abertos, gigantes malmequeres amarelos doiro, sorrindo para o sol.
Um dia um lenhador passou por ali e comentou: - Como veio nascer aqui afastado do jardim este girassol tão grande e com tantas flores? ! ....
Os meses foram passando, as pétalas caindo e uns enormes círculos acastanhados ficaram com tantas sementes que logo os pássaros começaram a comer e aquele espaço se tornou muito animado e muito visitado pelas mais variadas aves.
Na sua correria de sempre as formigas nem se apercebiam da festa que havia por cima do seu formigueiro. Mas ainda sobraram muitas sementes que foram caindo para o chão e foram nascendo e crescendo desordenadamente, formando um lindo jardim de girassóis no ano seguinte.
O velho tronco de árvore ficou todo coberto de flores amarelas e em cada ano que passa.
O jardim dos girassóis está mais bonito e maior e a nossa amiga formiga que carregava as sementes grandes, desta vez, em vez de encher mais o seu celeiro semeou um gigantesco jardim de amarelos girassóis.

                                                                    Maria Dores Amado


                 NOTÍCIAS CULTURAIS



      Decorre amanhã o almoço-convívio com "momentos de poesia" que

  consta do nosso plano de actividades. Lembramos que a concentração

  se faz junto ao Estádio do Bonfim (lado do jardim) pelas 9.30



      O nosso sócio e colaborador  Inácio Lagarto  informou-nos de que 

  tem um blogue poético. O endereço é http://otragal.blogspot.com
  
       

      Realiza-se em Lisboa, de 26 a 29 do corrente mês, o 56º Congresso

 da UMEM (União Mundial de Escritores Médicos), este ano organizado

pela SOPEAM (Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos).

quinta-feira, 13 de setembro de 2012


                     

 O CANTO DOS POETAS


               
     CALAFATE – O CANTADOR DE SETÚBAL

                                          VISTO POR UM BISNETO


     Rogério Peres Claro nasceu em Setúbal em 1921. Licenciado em Filologia Românica, foi professor do Ensino Técnico, jornalista e deputado à antiga Assembleia Nacional. É bisneto do poeta popular António Maria Eusébio, conhecido como “O Calafate”. Teve a gentileza de preparar para “O Canto dos Poetas” o artigo que se segue.


      Em 29 de Dezembro de 1968 foi inaugurado no Parque do Bonfim, por iniciativa do Rotary Club local, um busto em bronze do poeta popular setubalense António Maria Eusébio, falecido em 22 de Novembro de 1911. Estive presente à cerimónia, a convite do Rotary, na minha condição de bisneto, nascido em 6 de Outubro de 1921, dez anos após a sua morte. Tinha eu então, em 1968, 47 anos de idade e desempenhava as funções de director da actual Escola Sebastião da Gama e de deputado pelo distrito de Setúbal na Assembleia Nacional.
      Desde então, cresceu em mim a obrigação de dar a conhecer aos setubalenses do meu tempo a obra poética meu bisavô, que ficara conhecido pelo apelido de Calafate, pela profissão que desempenhara, e por Cantador de Setúbal, pelos versos da sua autoria que cantara até aos 90 anos.
       Rebusquei então na Imprensa da época as referências feitas à sua actividade de poeta e cantador e entre os papéis de familiares e de amigos. Assim cheguei a reunir 26.220 linhas de versos, sendo 9160 agrupadas em décimas.
       Com tanto material, foi-me possível elaborar os seguintes três livros de “VERSOS DO CANTADOR DE SETÚBAL”:

       Primeiro livro – Editado em 1985 na empresa tipográfica Ulmeiro, de Lisboa, abrangendo as recordações da vida do poeta, que ele narra em décimas a partir de 1906 e vividas por ele a partir de 1828. “Nessas recordações - diria o general Henrique das Neves, grande amigo do poeta, que fomentou a impressão dos primeiros folhetos - vemos desenrolar-se a vida de um proletário, de um plebeu, filho de pescadores, gente pobríssima; a história da luta de quem veio ao mundo desprotegidos dos outros e que, portanto, na vida do trabalho, teve de abrir caminho só pelo seu esforço. Assim foi que este analfabeto chegou honradamente aos 92 anos de idade. Do mesmo espaço, ele veio-nos contando o que viu, as grandes tragédias de que foi testemunha em parte. E como ele soube ver e observar! E que memória tão boa ainda hoje!”

       Segundo livro – Editado tal como o primeiro em 1985, o segundo volume (de 167 páginas) reflecte os grandes e pequenos acontecimentos da vida de todos os dias em Setúbal, como seu repórter tratando da perseguição religiosa, das festas populares, das posturas municipais, dos terrores do povo e dos casos de soalheiro.

       Terceiro livro – Só em 2008 veio a ser editado o terceiro e último volume dos versos do Cantador de Setúbal, agora pela empresa Corlito/Setúbal e em edição do Centro de Estudos Bocageanos. É um grosso volume de 341 páginas, no qual se descobre para além do poeta-repórter da cidade, o homem com as suas dores, as suas angústias, as suas desilusões.

       São três livros que nos dão a conhecer um setubalense que acompanhou a sua longa e rude vida de trabalhador no mar com uma produção literária merecedora dos elogios dos grandes escritores da sua época, de valor reconhecido até aos dias de hoje. Nascido em Setúbal em 1819, António Maria Eusébio nela constituiu a sua família e nela mereceu os elogios públicos que hoje o engrandecem cada vez mais: tem o nome gravado na rua e na casa onde nasceu; tem busto de bronze no Jardim onde cantou os seus versos; tem dignamente publicada toda a sua obra literária; foi há pouco agraciado com a medalha municipal de Actividades Culturais em cerimónia pública e na presença da família que na cidade continua a dignificá-lo cem anos após a sua morte. Com esta homenagem, António Maria Eusébio entrou definitivamente na galeria dos grandes poetas setubalenses.
 
                      Rogério Claro

                     

                           DE QUE SERVE A POESIA?


                                   De que serve a Poesia

                             a um homem como eu?

                             Para viver pobremente
                             como Bocage viveu.



                    De que serve o bom talento

                    num homem sem ter fortuna?
                    se lhe falta esta coluna
                    não lhe dão merecimento.
                    Até o fraco alimento
                    às vezes ninguém lhe fia
                    outras vezes passa o dia
                    sem almoço ou sem jantar.
                    E vão-lhe então perguntar
                        de que serve a Poesia?

                    Só para o comprometer
                    nalgumas obras que fez
                    serve para a estupidez
                    de até dele escarnecer.
                    Para o fazer padecer
                    o que alguém já padeceu
                    serve p`ra não ter de seu
                    às vezes nem um vintém.
                    Esse serviço está bem
                        a um homem como eu.

                    Serve p`ra ser desonrado
                    sem motivo nem razão
                    ter nome de mandrião
                    quem tanto tem trabalhado.
                    Serve p`ra andar mal trajado
                    serve p`ra andar indecente
                    e p`ra quando está doente
                    não ter nenhum tratamento.
                    Quem serve p`ra tal tormento
                        é p`ra viver pobremente.

                    De que serve a um pobre homem
                    cantar ou tocar viola?
                    Só para pedir esmola
                    p`ra pagar o pão que come.
                    Serve para sofrer fome
                    quando alguém não lhe valeu.
                    Serve enquanto não morreu
                    para sentir o que sinto
                    ora farto, ora faminto
                        como Bocage viveu.


                                      OS NOSSOS POETAS


     O MENDIGO


O pobre mendigo,

Vivendo na rua!
Chamam-lhe sem abrigo,
Tem por luz a da lua!

Nada tem de seu,
Vagueando pelas ruas!
Será cristão ou ateu?
Mostra suas carnes nuas!

Vivendo de caridade,
Olhado com indiferença!
Suportando a maldade,
Não tem lar nem dispensa

Dorme onde calha,
Na noite gelada!
Que Deus lhe valha,
E ache um vão de escada!
  
Agasalha-se com farrapos,
Tapa-se com caixas de cartão!
As roupas são trapos,
Que algumas almas lhe dão!

Desprezados da sociedade,
Ignorados por todos!
Neste mundo de maldade,
Passam fome a rodos!

Lembrados pelo Natal,
Ou no rigoroso inverno!
Por ser dia especial,
Terão um dia fraterno!

Arrastam os anos de vida,
Já indiferentes ao mundo!
Existência muito corroída,
Vida de pobre vagabundo!

A morte deixa-os indiferentes,
Porta aberta de salvação!
São pedintes indigentes,
Findam a vida sem condição

                        J. Rodrigues




             O DESTINO DAS FLORES…

Até nas próprias flores

Se nota a pouca sorte;

Umas enfeitam os Amores,
Outras enfeitam a morte!...

Se a estrada da vida é má,
Não vale a pena de clamores;
Triste sorte também há,
Até nas próprias flores…

Se tiraram teus valores,
Procura seres a mais forte;
Olha que até nas flores,
Se nota a pouca sorte…

As flores são todas lindas,
No seu estilo e nas cores;
Nem todas são preferidas,
Umas enfeitam os Amores!...

Em cada ramo de flores,
Há um destino tão forte:
Umas unem os amores,
Outras enfeitam a morte!...

                Mavilde Baião


                  BOLA

As audiências da bola
Devem-se em larga medida
À propaganda que rola
Manipulando a torcida.

A prova desta verdade
É que onde não existe
Tão grande publicidade
O futebol não resiste.

O hóquei também “mereceu”
Por cá cartel de arromba,
Mas pouco sobreviveu
Ao frade de Santa Comba…

Veja-se o caricato
Futebol americano,
Mas para eles um prato
De paladar soberano…

Já sabia um tal Ford
Que a propaganda é cortina
Fazendo dum fraco acorde
Uma sonata divina.

Antes do homem na lua,
Apoucando-lhes a obra,
Já lá estava a falcatrua
Vendendo banha de cobra…

                 Francisco Pratas


                    DICAS SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO


     Tem havido muito desacordo no que ao Acordo Ortográfico respeita. Alguns adultos preferem escrever como sempre fizeram. No entanto, ele foi adotado nas escolas e muitos dos nossos associados têm filhos e netos. Para facilitar o diálogo com eles em termos de escrita, O Canto dos Poetas vai publicar algumas das alterações mais importantes introduzidas na escrita oficial portuguesa.
     O alfabeto português, que tinha 23 letras, passa a ter 26 pela introdução do K (capa ou cá), do W (dâblio ou duplo V) e do Y (ípsilon ou i grego). São usados em:
     nomes próprios e seus derivados, como Wagner e Darwin,

     unidades monetárias, como Kwanza

  símbolos de uso internacional, como K (potássio) e kg (quilograma)

     topónimos, como Washington

     desportos, como windsurfe.

     Hoje ficamos por aqui, para não abusarmos da paciência dos leitores.
                                                                                             A.T.



                              ALCÁCER DO SAL

                    AS SUAS LENDAS E OS SEUS MITOS

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O concelho de Alcácer do Sal é o maior concelho do Distrito de Setúbal, pois tem uma área de 1 456 km2 e 14 287 habitantes (último senso) distribuídos pelas suas 6 freguesias; lamentavelmente, Alcácer não tem ligação directa com o Oceano Atlântico, vítima de uma má divisão administrativa, imposta sem qualquer sentido lógico.
Alcácer do Sal é uma terra antiquíssima, pois a presença humana tem lugar desde há cerca de 40 000 anos. A atestá-lo, estão os artefactos recolhidos um pouco por toda a região.
Já teve diversos nomes ao longo dos milénios. É uma das cidades mais antigas da Europa, fundada pelos fenícios 1.000 anos A.C. Pela sua importância e grandeza, emparceirava com Setúbal e Lisboa. Sempre foi palco de ocupações sucessivas por populações cujas origens se perdem na noite dos tempos.
Esta região, com a chegada dos romanos aí por volta do ano 130 A.C, era bastante desenvolvida. Os seus habitantes descendiam da mestiçagem dos naturais com os celtas e com outros povos que em deslocações pacíficas se foram caldeando.
Com a romanização a cidade passou a ser designada por Salácia Urbs Imperatória com estatuto de cidade de Direito Latino e tinha o poder de cunhar moeda. Os romanos impulsionaram o desenvolvimento da pesca e da indústria conserveira assim como desenvolveram também a indústria da cerâmica para que pudessem exportar as suas conservas.
No século I D.C. era já uma região mais que autossuficiente, o seu desenvolvimento era tal, que se afirmou como centro de exportação em larga escala, de conservas, sal, cereais, lã, cavalos e construção naval. O seu porto fluvial era seguro e de entrada fácil e a demanda ao Oceano Atlântico era sem perigo.
A ocupação romana ocorreu desde o ano de 130 A.C. ao ano 409 D.C. data em que começou o desmoronamento do império.
A partir de 409 foi uma época de correrias, razias, desencadeadas pelos Vândalos, Alanos e Suevos, povos que migraram do centro da Europa; foi um período curto, mas de muita destruição e estagnação que durou até ao ano 465, altura em que o império Visigótico se impôs, passando dominar a região.




No tempo dos visigodos a região recuperou e até prosperou. Foi uma época de acalmia. Nos anos 712/715, tropas islâmicas, atravessaram em massa o estreito de Gibraltar invadindo a Península Ibérica, que de escaramuça em escaramuça foram ocupando vastas áreas até que derrotaram definitivamente os visigodos na célebre batalha de Guadalete, ocupando praticamente toda a Península.
Sob a administração árabe a cidade de Salácia passou a ser designada por Alcácer do Sal. O seu desenvolvimento foi imenso, sob a égide sarracena atingindo o apogeu em esplendor.
No ano 997 os sarracenos organizaram em Alcácer uma esquadra e foram atacar Santiago de Compostela, onde provocaram grandes estragos, regressando com um rico saque.
Quando os cristãos se apossaram de Palmela e passaram a campear por toda a margem direita do rio Sado, em razias e pilhagens constantes, com hostilização permanente à navegação rio acima, a vida começou a tornar-se difícil em Alcácer do Sal, o que levou a cidade a entrar em declínio. Esta situação atingiu tal magnitude que toda área a norte de Alcácer passou a ser terra de ninguém.
Em 1158 D. Afonso Henriques organizou uma surtida, que foi bem-sucedida, culminando na conquista da cidade. O conquistador não permitiu a pilhagem do burgo e, até foi bastante magnânimo com população, negociando com os seus representantes a sua permanência, assim como a posse dos seus bens, a par de poderem exercer as suas actividades desde que pagassem o tributo anual e ao mesmo tempo mostrassem obediência e acatamento às determinações afonsinas. Após este acordo, e a execução de obras de restauro nas estruturas defensivas, D. Afonso Henriques instalou um forte contingente militar no castelo e nomeou o seu alcaide para governação da cidade. Confiante partiu de regresso a Lisboa. Depois da cessação das hostilidades a cidade voltou ao seu antigo dinamismo, os mercadores recomeçaram a sua actividade, a terra voltou a ser produtiva, e a vida recompôs-se.
Passados poucos anos de governação cristã, a cidade voltou novamente à posse da moirama, e segundo consta, com a cumplicidade da população. A guarnição afonsina foi totalmente dizimada.
Em 1217 D. Afonso II, com a ajuda duma esquadra de cruzados que se dirigia à Terra Santa, reconquistou a cidade de Alcácer após feroz cerco e os seus habitantes foram impedidos de sair. Depois do saque consumado, tudo o que estava vivo dentro das muralhas foi passado a fio de espada, como represália pela população ter quebrado o seu antigo compromisso de obediência. As leis da guerra eram impiedosas, esta prática era de uso comum naquela época.
A cripta do edifício da Pousada, em termos arqueológicos é de uma riqueza sem paralelo, tem um percurso muito bem delineado, onde é possível observar vestígios em diversos estratos, deixados pelas gerações que por ali passaram ao longo de três milénios.
Tudo está devidamente legendado. Uma visita mesmo apressada não se faz em menos de duas horas. As visitas organizadas podem ser acompanhadas por um técnico que em termos de informação chega ao pormenor.

                                                          Henrique Mateus