O CANTO DOS POETAS
O Canto dos
Poetas homenageia hoje o poeta setubalense João Carlos Raposo Nunes que, até deixar de escrever, há mais de uma dezena de anos, produziu uma obra
notável.
Aqui fica o prefácio de Bulbul (Cânticos Arrábidos), escrito por
Agostinho da Silva. O texto foi também publicado de forma isolada no jornal África em agosto de 1990.
A Arrábida espera.
Deixemos por agora de considerar e falar do esporão de Palmela, pois dele tem
ido tomando conta Santiago, seu Senhor e Dono, e, como tem de ser, seu
inspirador de futuro. Partiremos das arribas de Setúbal e veremos, como apoio e
empurrão de largada, a um tempo, o Grupo que Raposo Nunes tem congregado em sua
Arca do Setubalense, e, como mais perto e excelente incitamento à empresa, o
livro de Poemas que publicará em breve sob o título de Bulbul, ou seja, o
rouxinol de Oriente, em que, num perfeito domínio da linguagem e de toda a
musicalidade exterior do verso, lhe dá equilibrado vertebrar a musicalidade
interna de ver todo o passado como projeto de futuro, de se tomar saudade como
o valente desejo e a premonição de que virá tempo em que olharemos a Serra como
o triângulo para além da terra e à terra vinculado de que são extremos Europa,
Ásia e África e em que nos ajoelharemos perante o Brasil, criação máxima dos
Portugueses e modelo que se mostrará de todo o mundo a vir, de um mundo novo
nem avaro nem triste; não esqueceremos o patrono geral, místico dos céus sem
que ao mundo esqueça, Frei Agostinho da Cruz, com sua cela de monte e sua
gineta de companhia, nem esquecerei eu o trabalho de Orlando Ribeiro, o
primeiro que, com sua implícita metafísica, pôs mais ordem no que se pensaria
caos do que jamais fará o moderno progresso dos fractais, em que matemática irá
a domínios de que estava esquecida, mas que felizmente nunca avançará bastante
para que da vida desapareça o que a faz de interesse, isto é, o inesperado da
suprema e verdadeira criatividade; não esqueceu o Autor, sempre na melhor
inspiração, olhar em Sebastião da Gama o sentido das viagens que se julgam
impossíveis e o sacrifício na batalha que todos têm julgado desastrosa, mas que
travou os Turcos, firmou economia do Brasil e amparou em provações gente de um
e outro lado do Atlântico; à Senhora do Cabo chegaremos e aí estará a
recordação do génio analítico de Keil do Amaral ante o genético génio do Povo.
Por agora, ficaremos em Setúbal, para que todos possamos discutir e entender
neste Império, de que tem de ser Alferes Raposo Nunes, o canto do bulbul, agora
a ave mesmo. O faremos pensando no Castelo que homenageou o rei Filipe e
faremos que desta vez perceba ele como é o Entre-Sado-e-Tejo a verdadeira capital
do que pelo mundo tenha sido semeadura ibérica. Não nos faltará a nenhum de nós
audácia e reflexão; sabemos que a loucura só vale quando não falta o juízo. A
tudo vamos, connosco venham.
A.T.
A.T.
ENTRE-SADO-E-TEJO
(4º Cântico Arrábido)
Dois rios me olham
como dois sóis apagados.
Neve de fogo onde me devolvo
a escrever na noite visionária
o deslumbramento da Língua.
A Arrábida me deixa gravado nos
pés
o sangue do caminho.
Louco do Império
Cavaleiro da Pátria
sílaba a sílaba tocando o céu
que desloca as estrelas que
ensinam.
Entre-Sado-e-Tejo
rompe a aurora a profecia.
O Atlântico chega ao portinho,
Imensa Bacia
onde lavamos as chagas
abertas do mundo.
MICRO-POEMA a Miguel Torga
Recolherei das Naus a Poesia,
a Saudade salgada de distância,
a memória calcinada nos porões
da esperança.
E não me esquecerei do vento,
das marés-vivas, do encanto
bailando
nas vagas do Oriente.
Jamais os antepassados serão para
mim
o passado – mas sim o futuro que
se lê
nas constelações, nos enigmas, nas areias
finas
da Lusitana terra bem amada.
OS NOSSOS POETAS
BANCO DE JARDIM
Sentei-me
no banco do jardim
E
fiquei inebriada
A
respirar o perfume
Daquelas
flores tão belas
Cintilando
como estrelas
Tão
felizes sem queixumes
Num
recanto do jardim.
Cada
cor uma flor
Beijando-se
com amor
Numa
amizade sem fim
Realçando
sua beleza
Bailando
em liberdade
Transmitindo
felicidade
Encantos
da natureza!
Este
jardim sedutor
Que
tem assim tanta flor
Qual
delas a mais bela
Se
eu fosse pintor
Pintava
com amor
Uma
linda aguarela!
Flores
o mais belo tema
Dá-nos
prazer à vida
Minha
alma enternecida
Fez
este simples poema!
Celeste Santos
SENDO DIFERENTES; MAS IGUAIS!
Se o mundo, um dia achar sabedoria,
Quando então souber compreender,
Nesta vida tudo muda e varia,
Todos os dias estamos a aprender!
Na verdade, parecemos todos iguais,
Mas nesta parecença; somos diferentes,
Conquanto há os que se parecem mais,
Pensando até serem os mais inteligentes!
Mas tal como os frutos e as flores,
Que nos podem mais atrair e agradar,
Sendo variadas e lindas suas cores,
Por serem diferentes têm variar!
Assim acontece com a humanidade,
Distinguindo-se pela cor da pele ou raça!
Diferentes, mas sem haver desigualdade,
Atendendo à sua condição de sua graça!
As pessoas, sendo seres especiais,
Seres únicos no conceito da criação,
Será impossível encontra dois iguais,
Aos diferentes daremos mais dedicação!
É nessa desigualdade encontrada,
Que pomos à prova o nosso carinho,
À humanidade deve ser apresentada,
A obra desenvolvida neste cantinho!
J. Rodrigues
RIO DOS AMORES
Rio dos amores,
Jardim de flores
enfeitado,
Por entre o
emancipado
Quadro de mil
cores,
Rosas a florir em
plena alvorada,
Canto que vem da
alma,
Rasgo que traz o
tempo,
Vago sentimento,
Sereno onde a
calma
É mulher
feiticeira,
A chamar por mim,
Como que uma flor
de jasmim,
Aqui mesmo à
minha beira,
Poema que vence a
liberdade,
sob vozes
gritantes que intervêm,
soando mais alto
que antevêem,
um travo amargo de saudade!
Mário Serra
SEM DIVIDIR PARA REINAR
Amizade a todos dar
Sem sombra de
presunção;
Sem dividir para
reinar,
Só o nobre
coração!
Na sua
simplicidade
Não se ver lá nas
“Alturas”,
Onde algumas
criaturas
Se veem na sua
vaidade.
Sem disfarces de
bondade
Nem falso aperto de
mão,
E sem imposta
condição
De quem deve ou
não falar;
Amizade a todos
dar,
Sem sombra de
presunção!
Amizade a cem por
cento,
Saber dar e
receber;
E com todos
conviver,
Sem máscara de
fingimento,
É ter na alma
sentimento
E no peito
gratidão;
Essa sublime
devoção,
De amizades
partilhar,
Sem dividir para
reinar,
Só o nobre
coração!
Luís Francisco
Chainho
FOTOGRAFIAS
Não é o que parece...Não passa da fotografia invertida de um pedaço de tronco de diospireiro.
A.T.
SETÚBAL ANTIGA
FONTE DE PALHAIS (II)
No artigo anterior demos a conhecer os dados históricos desta
fonte, mas há outros factos que são muito pouco conhecidos, talvez por serem
baseados, no consta, no diz-se que, e como têm sido transmitidos oralmente de
geração em geração, já terão muito pouco de realidade, parecendo-se mais com a
lenda.
O que vos vou transmitir foi-me relatado pela D. Raquel, senhora
já muito idosa, aí pelos seus noventa anos, mas muito lúcida. Simpatiquíssima, gostava
de falar sobre Setúbal de coisas que ouviu á sua avó, segundo me dizia. No ano
de 1978 ainda residia no segundo andar do prédio nº.11 da Travessa da
Portuguesa, onde a conheci, num caso meramente fortuito; dizia-me que vivia só
e que o que mais a assustava era a solidão, pelo que anuí em falar com ela de
vez em quando no café Benjamim onde era hábito ir tomar café. Creio que este
estabelecimento ainda existe na Av. cinco de Outubro. A D. Raquel tinha um
poder comunicativo que encantava.
Caro leitor: quero que fique ciente que, (segundo o velho ditado
de que quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto) eu para não fugir à
regra, do que lhe vou falar, muita coisa acabei por acrescentar e, vamos,
adaptei, ancorado na imaginação criativa para que o relato ficasse mais
floreado, e até mais interessante.
Os aguadeiros de Setúbal eram uma corporação laboriosa que
garantia o abastecimento de água á cidade. Naqueles tempos não havia um serviço
público de abastecimento, eram os aguadeiros que prestavam esse serviço,
mediante contrato ou a determinado preço por bilha. Quem não podia comprar a
água, teria que se abastecer nas diversas fontes da cidade, sujeitando-se às
circunstâncias.
Os aguadeiros tinham um líder, conhecido por Toino Marau, homem de compleição física
avantajada, namoradeiro, exímio jogador de pau, metediço com as mulheres de tal
maneira que poucas ficavam indiferentes aos seus piropos.
Os almocreves eram outra classe laboriosa. Seriam os chauffeurs de
hoje. Eram eles os garantes de uma boa circulação rodoviária. Conduziam trens,
caleches, palaus, enfim todo o tipo de carripanas e eram mestres a lidar com os
animais. Também eram eles que com carroças, asseguravam o transporte de todo o
tipo de mercadorias dentro e entre as povoações vizinhas, quer para consumo
corrente, quer para abastecer as feiras e mercados das redondezas. (Estes
almocreves eram designados por carroceiros, e tinham uma linguagem muito
própria).
Os almocreves também tinham o seu líder como não podia deixar de
ser e era conhecido pela alcunha de Zé
Bom (Hum! de bom é que não tinha nada), que além ter os mesmos
dotes do Toino Marau , ainda
tinha outros: era bonitão, cantava e dançava muito bem e também tinha a arte de
endireita; era ele que após algum trambolhão dos seus clientes, lhes punha os
ossos no lugar. Ora com tantas dotações, a par de não ter qualquer laivo de
vergonha, era um D. Juan nato.
Estes dois personagens, Toino
Marau e Zé Bom, criavam
situações de ciumeira, inveja, desassossego e um mau estar geral permanente
entre a população, que embora se mantivesse em acalmia, esta não passava de
aparente; o descontentamento fervilhava em surdina, só que não explodia por
temor aos dois mariolas. Pois tanto o Toino
Marau como o Zé Bom
eram lestos em distribuir umas boas fangueiradas pelos recalcitrantes ao menor
pretexto, obrigando os chifrudos a serem mais comedidos.
Estas situações chegavam aos ouvidos do padre José Maria que
oficiava na igreja de Santa Maria, que através da confissão estava bem
inteirado do que se passava. Em sua opinião, o Toino Marau e o Zé
Bom eram umas autênticas pestes. Por mais de uma vez os chamou à
sacristia pregando-lhe grandes sermões sobre a sua conduta moral, chegando até
mesmo a ameaçá-los com a excomunhão, sem quaisquer resultados.
A fonte de Palhais era a preferida dos almocreves para dar água
aos seus animais. Estavam sempre presentes.
Os aguadeiros, pela fama que as águas da fonte de Palhais tinham
de ser milagrosas, os seus clientes exigiam-na. Como tal era ali que iam encher
as bilhas.
Aguadeiros e almocreves, era muita gente para uma fonte tão
pequena. Nas horas de ponta formavam-se filas de espera. Nestas situações a paciência
às vezes esgotava-se, havia sempre um outro mais oportunista que não estava pelos
ajustes de respeitar a fila organizada, e quando isto acontecia, os conflitos
tomavam proporções preocupantes, com aguadeiros e almocreves a enfrentarem-se
em grandes refregas.
Estas situações só aconteciam quando os lideres não estavam
presentes, mas assim que um chegava, os ânimos serenavam, e quando alguns
contendores mais belicosos não se acomodavam, os líderes agarravam nos varapaus
e distribuíam umas bordoadas e os ânimos acalmavam logo, regressando a paz e a
concórdia finalmente ao terreiro.
Naqueles tempos a vida era violenta, os direitos, o respeito e as
boas maneiras eram impostas pela força, quase sempre com injustiça.
O Toino Marau
e o Zé Bom não eram amigos,
davam-se razoavelmente bem, ambos eram chefes de facções com perspectivas
diferentes mas… no fundo respeitavam-se, melhor, temiam-se… e dai a razão da
cordialidade entre ambos.
Tanto um como o outro sabiam que se alguma vez se enfrentassem, um
sairia vencido, mas como a vitória era duvidosa para qualquer dos lados,
preferiam por estratégia mostrar uma boa relação e assim manter o prestígio
junto das suas falanges. No entanto era notório que entre eles existia um
odiozinho de estimação.
Henrique
Mateus
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