segunda-feira, 3 de setembro de 2012


            


O CANTO DOS POETAS



           O Canto dos Poetas homenageia hoje o poeta setubalense João Carlos Raposo Nunes que, até deixar de escrever, há mais de uma dezena de anos, produziu uma obra notável.



            Aqui fica o prefácio de Bulbul (Cânticos Arrábidos), escrito por Agostinho da Silva. O texto foi também publicado de forma isolada no jornal África em agosto de 1990.

 A Arrábida espera. Deixemos por agora de considerar e falar do esporão de Palmela, pois dele tem ido tomando conta Santiago, seu Senhor e Dono, e, como tem de ser, seu inspirador de futuro. Partiremos das arribas de Setúbal e veremos, como apoio e empurrão de largada, a um tempo, o Grupo que Raposo Nunes tem congregado em sua Arca do Setubalense, e, como mais perto e excelente incitamento à empresa, o livro de Poemas que publicará em breve sob o título de Bulbul, ou seja, o rouxinol de Oriente, em que, num perfeito domínio da linguagem e de toda a musicalidade exterior do verso, lhe dá equilibrado vertebrar a musicalidade interna de ver todo o passado como projeto de futuro, de se tomar saudade como o valente desejo e a premonição de que virá tempo em que olharemos a Serra como o triângulo para além da terra e à terra vinculado de que são extremos Europa, Ásia e África e em que nos ajoelharemos perante o Brasil, criação máxima dos Portugueses e modelo que se mostrará de todo o mundo a vir, de um mundo novo nem avaro nem triste; não esqueceremos o patrono geral, místico dos céus sem que ao mundo esqueça, Frei Agostinho da Cruz, com sua cela de monte e sua gineta de companhia, nem esquecerei eu o trabalho de Orlando Ribeiro, o primeiro que, com sua implícita metafísica, pôs mais ordem no que se pensaria caos do que jamais fará o moderno progresso dos fractais, em que matemática irá a domínios de que estava esquecida, mas que felizmente nunca avançará bastante para que da vida desapareça o que a faz de interesse, isto é, o inesperado da suprema e verdadeira criatividade; não esqueceu o Autor, sempre na melhor inspiração, olhar em Sebastião da Gama o sentido das viagens que se julgam impossíveis e o sacrifício na batalha que todos têm julgado desastrosa, mas que travou os Turcos, firmou economia do Brasil e amparou em provações gente de um e outro lado do Atlântico; à Senhora do Cabo chegaremos e aí estará a recordação do génio analítico de Keil do Amaral ante o genético génio do Povo. Por agora, ficaremos em Setúbal, para que todos possamos discutir e entender neste Império, de que tem de ser Alferes Raposo Nunes, o canto do bulbul, agora a ave mesmo. O faremos pensando no Castelo que homenageou o rei Filipe e faremos que desta vez perceba ele como é o Entre-Sado-e-Tejo a verdadeira capital do que pelo mundo tenha sido semeadura ibérica. Não nos faltará a nenhum de nós audácia e reflexão; sabemos que a loucura só vale quando não falta o juízo. A tudo vamos, connosco venham.
                                                                                                        A.T.


                           ENTRE-SADO-E-TEJO 

                                             (4º Cântico Arrábido)

               Dois rios me olham
               como dois sóis apagados.
               Neve de fogo onde me devolvo
               a escrever na noite visionária
               o deslumbramento da Língua.

               A Arrábida me deixa gravado nos pés
               o sangue do caminho.

               Louco do Império
               Cavaleiro da Pátria
               sílaba a sílaba tocando o céu
               que desloca as estrelas que ensinam.

               Entre-Sado-e-Tejo
               rompe a aurora a profecia.
               O Atlântico chega ao portinho,
               Imensa Bacia
               onde lavamos as chagas
               abertas do mundo.



                  MICRO-POEMA a Miguel Torga


               Recolherei das Naus a Poesia,
               a Saudade salgada de distância,
               a memória calcinada nos porões
               da esperança.
               E não me esquecerei do vento,
               das marés-vivas, do encanto bailando
               nas vagas do Oriente.
               Jamais os antepassados serão para mim
               o passado – mas sim o futuro que se lê
               nas constelações, nos enigmas, nas areias finas
               da Lusitana terra bem amada.



OS NOSSOS POETAS


                                              BANCO DE JARDIM


Sentei-me no banco do jardim
E fiquei inebriada
A respirar o perfume
Daquelas flores tão belas
Cintilando como estrelas
Tão felizes sem queixumes
Num recanto do jardim.
Cada cor uma flor
Beijando-se com amor
Numa amizade sem fim
Realçando sua beleza
Bailando em liberdade
Transmitindo felicidade
Encantos da natureza!
Este jardim sedutor
Que tem assim tanta flor
Qual delas a mais bela
Se eu fosse pintor
Pintava com amor
Uma linda aguarela!
Flores o mais belo tema
Dá-nos prazer à vida
Minha alma enternecida
Fez este simples poema!


                                             Celeste Santos



            SENDO DIFERENTES; MAS IGUAIS!


Se o mundo, um dia achar sabedoria,
Quando então souber compreender,
Nesta vida tudo muda e varia,
Todos os dias estamos a aprender!
  
Na verdade, parecemos todos iguais,
Mas nesta parecença; somos diferentes,
Conquanto há os que se parecem mais,
Pensando até serem os mais inteligentes!

Mas tal como os frutos e as flores,
Que nos podem mais atrair e agradar,
Sendo variadas e lindas suas cores,
Por serem diferentes têm variar!

Assim acontece com a humanidade,
Distinguindo-se pela cor da pele ou raça!
Diferentes, mas sem haver desigualdade,
Atendendo à sua condição de sua graça!
  
As pessoas, sendo seres especiais,
Seres únicos no conceito da criação,
Será impossível encontra dois iguais,
Aos diferentes daremos mais dedicação!
  
É nessa desigualdade encontrada,
Que pomos à prova o nosso carinho,
À humanidade deve ser apresentada,
A obra desenvolvida neste cantinho!

                                J. Rodrigues


              RIO DOS AMORES


Rio dos amores,
Jardim de flores enfeitado,
Por entre o emancipado
Quadro de mil cores,
Rosas a florir em plena alvorada,
Canto que vem da alma,
Rasgo que traz o tempo,
Vago sentimento,
Sereno onde a calma
É mulher feiticeira,
A chamar por mim,
Como que uma flor de jasmim,
Aqui mesmo à minha beira,
Poema que vence a liberdade,
sob vozes gritantes que intervêm,
soando mais alto que antevêem,
um travo amargo de saudade!

                                    Mário Serra



                   SEM DIVIDIR PARA REINAR


Amizade a todos dar
Sem sombra de presunção;
Sem dividir para reinar,
Só o nobre coração!

Na sua simplicidade
Não se ver lá nas “Alturas”,
Onde algumas criaturas
Se veem na sua vaidade.
Sem disfarces de bondade
Nem falso aperto de mão,
E sem imposta condição
De quem deve ou não falar;
Amizade a todos dar,
Sem sombra de presunção!

Amizade a cem por cento,
Saber dar e receber;
E com todos conviver,
Sem máscara de fingimento,
É ter na alma sentimento
E no peito gratidão;
Essa sublime devoção,
De amizades partilhar,
Sem dividir para reinar,
Só o nobre coração!

       Luís Francisco Chainho


                                FOTOGRAFIAS



Não é o que parece...Não passa da fotografia invertida de um pedaço de tronco de diospireiro.
                               A.T.


                          SETÚBAL ANTIGA

                          FONTE DE PALHAIS (II)




No artigo anterior demos a conhecer os dados históricos desta fonte, mas há outros factos que são muito pouco conhecidos, talvez por serem baseados, no consta, no diz-se que, e como têm sido transmitidos oralmente de geração em geração, já terão muito pouco de realidade, parecendo-se mais com a lenda.
O que vos vou transmitir foi-me relatado pela D. Raquel, senhora já muito idosa, aí pelos seus noventa anos, mas muito lúcida. Simpatiquíssima, gostava de falar sobre Setúbal de coisas que ouviu á sua avó, segundo me dizia. No ano de 1978 ainda residia no segundo andar do prédio nº.11 da Travessa da Portuguesa, onde a conheci, num caso meramente fortuito; dizia-me que vivia só e que o que mais a assustava era a solidão, pelo que anuí em falar com ela de vez em quando no café Benjamim onde era hábito ir tomar café. Creio que este estabelecimento ainda existe na Av. cinco de Outubro. A D. Raquel tinha um poder comunicativo que encantava.
Caro leitor: quero que fique ciente que, (segundo o velho ditado de que quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto) eu para não fugir à regra, do que lhe vou falar, muita coisa acabei por acrescentar e, vamos, adaptei, ancorado na imaginação criativa para que o relato ficasse mais floreado, e até mais interessante.
Os aguadeiros de Setúbal eram uma corporação laboriosa que garantia o abastecimento de água á cidade. Naqueles tempos não havia um serviço público de abastecimento, eram os aguadeiros que prestavam esse serviço, mediante contrato ou a determinado preço por bilha. Quem não podia comprar a água, teria que se abastecer nas diversas fontes da cidade, sujeitando-se às circunstâncias.
Os aguadeiros tinham um líder, conhecido por Toino Marau, homem de compleição física avantajada, namoradeiro, exímio jogador de pau, metediço com as mulheres de tal maneira que poucas ficavam indiferentes aos seus piropos.
Os almocreves eram outra classe laboriosa. Seriam os chauffeurs de hoje. Eram eles os garantes de uma boa circulação rodoviária. Conduziam trens, caleches, palaus, enfim todo o tipo de carripanas e eram mestres a lidar com os animais. Também eram eles que com carroças, asseguravam o transporte de todo o tipo de mercadorias dentro e entre as povoações vizinhas, quer para consumo corrente, quer para abastecer as feiras e mercados das redondezas. (Estes almocreves eram designados por carroceiros, e tinham uma linguagem muito própria).
Os almocreves também tinham o seu líder como não podia deixar de ser e era conhecido pela alcunha de Zé Bom (Hum! de bom é que não tinha nada), que além ter os mesmos dotes do Toino Marau , ainda tinha outros: era bonitão, cantava e dançava muito bem e também tinha a arte de endireita; era ele que após algum trambolhão dos seus clientes, lhes punha os ossos no lugar. Ora com tantas dotações, a par de não ter qualquer laivo de vergonha, era um D. Juan nato.
Estes dois personagens, Toino Marau e Zé Bom, criavam situações de ciumeira, inveja, desassossego e um mau estar geral permanente entre a população, que embora se mantivesse em acalmia, esta não passava de aparente; o descontentamento fervilhava em surdina, só que não explodia por temor aos dois mariolas. Pois tanto o Toino Marau como o Zé Bom eram lestos em distribuir umas boas fangueiradas pelos recalcitrantes ao menor pretexto, obrigando os chifrudos a serem mais comedidos.
Estas situações chegavam aos ouvidos do padre José Maria que oficiava na igreja de Santa Maria, que através da confissão estava bem inteirado do que se passava. Em sua opinião, o Toino Marau e o Zé Bom eram umas autênticas pestes. Por mais de uma vez os chamou à sacristia pregando-lhe grandes sermões sobre a sua conduta moral, chegando até mesmo a ameaçá-los com a excomunhão, sem quaisquer resultados.
A fonte de Palhais era a preferida dos almocreves para dar água aos seus animais. Estavam sempre presentes.
Os aguadeiros, pela fama que as águas da fonte de Palhais tinham de ser milagrosas, os seus clientes exigiam-na. Como tal era ali que iam encher as bilhas.
Aguadeiros e almocreves, era muita gente para uma fonte tão pequena. Nas horas de ponta formavam-se filas de espera. Nestas situações a paciência às vezes esgotava-se, havia sempre um outro mais oportunista que não estava pelos ajustes de respeitar a fila organizada, e quando isto acontecia, os conflitos tomavam proporções preocupantes, com aguadeiros e almocreves a enfrentarem-se em grandes refregas.
Estas situações só aconteciam quando os lideres não estavam presentes, mas assim que um chegava, os ânimos serenavam, e quando alguns contendores mais belicosos não se acomodavam, os líderes agarravam nos varapaus e distribuíam umas bordoadas e os ânimos acalmavam logo, regressando a paz e a concórdia finalmente ao terreiro.
Naqueles tempos a vida era violenta, os direitos, o respeito e as boas maneiras eram impostas pela força, quase sempre com injustiça.
O Toino Marau e o Zé Bom não eram amigos, davam-se razoavelmente bem, ambos eram chefes de facções com perspectivas diferentes mas… no fundo respeitavam-se, melhor, temiam-se… e dai a razão da cordialidade entre ambos.
Tanto um como o outro sabiam que se alguma vez se enfrentassem, um sairia vencido, mas como a vitória era duvidosa para qualquer dos lados, preferiam por estratégia mostrar uma boa relação e assim manter o prestígio junto das suas falanges. No entanto era notório que entre eles existia um odiozinho de estimação.
                                                                                       Henrique Mateus




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