sexta-feira, 24 de agosto de 2012




                    O CANTO DOS POETAS





FLORBELA ESPANCA
(Vila Viçosa, 1894, Matosinhos, 1930)


O Canto dos Poetas saúda a entrada das senhoras no bloque. Já tardavam. Para as homenagear, considerámos adequado lembrar Florbela Espanca.
Alentejana arrebatada, Florbela atravessou a vida com inquietação e escolheu a morte prematura aos 36 anos. O acidente que, em 1927, vitimou o seu irmão Apeles, aviador da Marinha, terá fragilizado ainda mais o solo que pisava.
Apeles é um nome estranho entre nós. O pai chamou-o assim em homenagem ao pintor grego escolhido por Alexandre Magno para perpetuar a sua imagem.

                                                                                            Apeles é o terceiro da esquerda, em pé

Flor Bela e Apeles eram filhos ilegítimos de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo. O pai começou por ser sapateiro mas fez-se antiquário, negociante de cabedais, fotógrafo e empresário de cinema. As crianças foram criadas na casa paterna, tendo a mulher legítima de João Espanca por madrinha.
Florbela Espanca foi das primeiras raparigas portuguesas a frequentar um Liceu. Começou a escrever versos na adolescência e assinou o seu primeiro conto aos treze anos. Casou, pela primeira vez, em 1913. Colaborou em algumas revistas de Évora e matriculou-se em Direito, na Universidade de Lisboa. Não foi longe no estudo universitário. Publicou a sua primeira obra, o volume de sonetos Livro de Mágoas em 1919.
Divorciou-se, casou, e voltou a divorciar-se e a casar. A sua depressão evoluía. Encontrou dificuldades em publicar os seus poemas. Até a sua obra-prima Charneca em Flor tardou a encontrar editor. O seu último marido foi um médico. Sabe-se que santos da casa não fazem milagres mas, ao tempo, não existiam medicamentos eficazes para combater o seu mal. Depois de várias tentativas, Florbela Espanca envenenou-se com barbitúricos, no dia do seu 36º aniversário. Diz-se que pediu para lhe colocarem no caixão os restos do avião em que morreu o seu irmão Apeles. 
    Há quem atribua à reação de Florbela com Apeles um caráter incestuoso. A acusação carece de fundamento.
Florbela Espanca deixou uma obra variada que inclui poesia, contos e um diário. Dos seus versos sobressaem o individualismo e a solidão, tantas vezes ligados na vida. A poetisa não se prende a analisar a política nem os problemas sociais do seu País. Canta, acima de tudo, a paixão. Cultivou o soneto, técnica poética de estranha longevidade, que terá nascido na Sicília no século XIII e foi aperfeiçoada por Petrarca. Apesar das regras que o espartilham, o soneto teve força bastante para atravessar todos os movimentos literários conhecidos.
Escolhi o poema Saudades para ilustrar este texto. Poderia ter optado por muitos outros.

                                                          SAUDADES


Saudades! Sim… talvez… e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, não nos importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já me esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos se quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!


                             OS NOSSOS POETAS



UM POEMA TE ESCREVI

Esta noite, eu não dormi,
Minha mente não me deixou;
Um Poema eu te escrevi,
Meu coração mo ditou.

 A pensar como escrever,
Um Poema só para ti,
A saudade veio-me dizer!
Esta noite não dormi…

Vivendo na solidão,
Meu Amor, por ti senti!
Estando triste, meu coração,
Um Poema te escrevi!

De tanto em ti pensar,
O meu sono se ausentou;
E sem dormir fui ficar,
A mente não me deixou!

Nesta luta sem dormir,
Meu sentido viajou…
E um Poema… de sentir,
Meu coração mo ditou!

                  Mavilde Baião


SOU ALMA, SOU FLOR, SOU VENTO

No peito guardo a lembrança
Do mundo que nunca vi,
Dessa mágoa tão profunda,
de um amor que não vivi.

Caminho por entre as águas
Profundas da solidão,
No cabelo guardo o toque
Do calor da tua mão.

Sou alma, sou flor, sou vento,
Sou canção, sou pensamento,
Sou lembrança de um momento,
Sou palavra, sou tormento.

Na varanda espero a noite
Que me enche de saudade,
Não quero mais lembrar o tempo
Em que vesti a vaidade.

Este amor de capa e espada
Que rasga restos de mim,
Preenche todas as horas,
Transforma-me em arlequim.

Perdida em sons do momento,
Faço deles minha história,
Perco a noção do caminho,
Vivo envolta na memória.

Sou alma, sou flor, sou vento,
Sou canção, sou pensamento,
Sou lembrança de um momento,
Sou palavra, sou tormento!

                            Lou Alma


           O MEU MAR

Ò Mar revolto da minha paixão
Do meu sonho de menina inocente
És aguarela viva sempre recente
E pedaços de Amor e muita ilusão

Ò Mar inquietude da minha alvorada
Demência da Alma que deseja esquecer
O que outrora foi já o meu sofrer
Que dir-te-ia hoje de ti não querer nada

Ò Mar de encanto nas noites estreladas
Amar-te assim eu não sei porque o faço
Porque ao meu ser roubaste um pedaço
Que jaze desfeito nas tuas ondas prateadas

Ò Mar irrequieto beijando a areia
Desfalecendo na praia constantemente
No meu corpo eu queria ardentemente
Sentir o teu beijo como fora sereia

Ò Mar de amargura e de felicidade
De lucidez amarga e de confusão
Não sentindo rancor no meu coração
Eu juro amar-te com fidelidade

Ò Mar que abraço com o meu olhar
Que és pranto e dor dentro do peito
Mas diante de ti eu fico sem jeito
Sem saber a razão de tanto te amar.

                          Maria do Mar


                EU QUIS

Quis apagar o Inverno do meu rosto
Para que nele habitasse a Primavera
Como pétala amarelecida ao sol posto
Cai a noite e tudo apenas foi uma quimera

Quis lavar a alma com água da nascente
Que brota do meu olhar como caudal
Mas essa água sem eu saber e de repente
Passa a ser coisa nenhuma e tão banal

Quis cobrir-me de salpicos prateados
De maresia que encontro no meu mar
Mas num pranto os meus olhos já cansados
São um lago onde afogo o meu penar

Quis desfazer a nuvem do pensamento
Levando-a para longe deste meu ser
Mas algo mais forte como lamento
Fez na minha força eu à vida me render

Quis como Jesus sobre as águas caminhar
E ir mais longe num Outono indesejado
Nas margens do meu rio que já foi mar
Caminho sim, num sonho meu inacabado

Quis que o meu coração tivesse asas brancas
Para que no meu peito ele pudesse voar
Mas apesar da vida ser ela feita de mudanças
Eu quero sim, que meu coração não vá mudar.

                                              Maria Teresa Palmeira


SETÚBAL DE ONTEM E DE HOJE
FONTE DE PALHAIS

Esta fonte, ou fontanário, situa-se no final da Avenida Cinco de Outubro, frente ao jardim do Quebedo. A sua construção data de 1772.
O material empregue na sua construção é o mármore branco, sendo a sua planta bem delineada; são salientes os relevos constituídos pelo escudo das armas de Portugal, com arabescos, troncos, folhas, flores e algumas bagas de loureiro, encimada pela coroa imperial com cruz.
Tem bebedouro para animais e duas carrancas como bicas.
Consta que inicialmente as suas águas vinham canalizadas duma nascente situada um pouco acima do caminho-de-ferro, mais precisamente nos terrenos onde hoje existe a Travessa dos Cobertos, terra baldia na altura, embora dentro do recinto amuralhado. Tinham fama de ser águas milagrosas.
Esta fonte também era conhecida como chafariz de S. Bernardo, por nas imediações existir o convento da freiras Bernardas. Ao longo da sua história também foi conhecida por fonte dos Aguadeiros e por fonte dos Almocreves.
Ainda não há muito tempo a água deixou de correr pelas bicas desta fonte, ficando seca, abandonada, deixando de cumprir as funções para que tinha sido criada.
Hoje está cuidada e pelas suas bicas corre água, embora já não sirva para dessedentar os animais como outrora, mas… são os pombos que a fruem em pleno, dando-lhe até uma certa graça. A fonte, agora está linda, enquadrada por canteiros de relva, formando um cantinho agradável à sombra dos jacarandás. Nas tardes amenas, ali para o lado da noitinha, parece ainda ouvir-se o bulício dos outros tempos, quando toda a gente após o dia de trabalho vinha encher a sua bilha de água e tagarelar um pouco na coscuvilhice, naquele espaço que na altura devia ser um grande terreiro.
Com a idade, as coisas também morrem, mas esta fonte ainda não morreu, está bem viva na memória dos mais idosos que por ali passam, quedando-se saudosos dos tempos da sua juventude, quando ali vinham refrescar-se na sua água sempre fresquíssima.

                                                                        Henrique Mateus

                                                    CONTOS DO MUNDO  


                          A CAIXA DE SAPATOS


─ Ai o meu rico homem… ─ lamentava-se a tia Aldina, lavada em lágrimas. Ai o meu rico homem!
Rico nunca fora Zé Furtado. Era homem de trabalho e havia quem o considerasse o melhor podador da terra. Vivera melhor que os pobres, mas pouco lhe sobrara. Os pequenos terrenos que possuía eram os que ele e a mulher tinham herdado. Não bastavam para o sustento do casal. O Zé e a mulher alugavam os braços à jorna, sempre que havia oportunidade.
─ Ai o meu rico homem!
A tia Aldina estava cansada. Quando a voz lhe esmorecia, esforçava-se por gritar. Mulher que se prezasse devia chorar alto nos funerais dos seus.
O marido não tinha sido melhor nem pior que os mais da aldeia. Esforçava-se durante a semana mas, aos sábados, relaxava e passava os fins de tarde na sua pequena adega, situada no piso térreo da habitação. Era onde estavam as tulhas de cereais. Guardava lá duas pipas de vinho e um cântaro de azeite. Bebia sozinho e quase às escuras, sentado num banco de madeira.
O álcool não o punha alegre. Pelo segundo ou terceiro copo sentia-se eufórico, mas aquilo durava pouco. Mais um quartilho e dava-lhe para remoer as mágoas. Começava por analisar cada grande ou pequena frustração da semana que passara, saboreando a amargura como se fosse mel. Quando o álcool lhe aquecia as veias, obrigava-se a projetar no ecrã da alma os momentos piores de toda uma vida. Havia três episódios que nunca faltavam.
Não lhe coubera nada da herança da tia Maria, que morrera sem descendentes. Ao morrer, andava de mal com o irmão Joaquim, pai do Zé. Fizera testamento a favor dos filhos do irmão António. Ainda eram umas terras jeitosas, sem falar da casa… E lá ia mais um copo, para calar a mágoa.
Poucos anos depois, o velho Manuel Cantoneiro recusara dar-lhe a filha em casamento.
─ Quem é que aquele gajo pensava que era? ─ resmungava o Zé. Já está há muito a arder no inferno.
O pior que lhe acontecera na vida fora não ter sido apurado para a tropa por ser baixo. Quem era recusado passava por não ser homem inteiro.
─ Sou tão homem como qualquer um ─ repetia para si próprio.
Percorrida a via-sacra da amargura, levantava-se, com alguma dificuldade, subia a escada a cambalear e ia ter com a mulher que se refugiava no extremo da cama, debaixo das mantas, como se elas a pudessem proteger da tempestade que chegava. Nunca lhe faltavam pretextos para bater. A tia Aldina era sovada quase todos os sábados. Às vezes, depois de a espancar, o homem queria sexo.
─ Ai o meu rico homem…
Agora, parecia distante a brutalidade semanal. Os mortos são vistos sob outra luz. Os defeitos esbatem-se e as qualidades reluzem. Para Aldina, era como se as pancadas nunca lhe tivessem doído. 
Quando quatro homens pegaram o modesto caixão aos ombros e o fizeram descer as escadas, os gritos da viúva subiram de tom. Depois, soluçou durante meia hora e acabou por se calar.
No dia seguinte, no sótão da casa, as duas netas do finado entretinham-se a brincar. A Marta ia nos oito anos. Era magra, de rosto fino e tranças ruças. Mais nova, a Lídia tinha a cara larga e o cabelo escuro cortado curto.
As crianças sempre imitaram os adultos. As meninas daquele tempo divertiam-se com tachos velhos, vassouras e bonecas de trapos.
Ao morrer, Zé Furtado não tinha sapatos apresentáveis. A mulher mandara uma vizinha comprar uns novos à loja da tia Maria Raquelina, que vendia de tudo. Recomendara-lhe:
─ Não tragas uns caros… São para usar só uma vez.
As meninas tinham metido um boneco na caixa de sapatos, com algumas flores de cada lado. Lamentavam-se à vez:
─ Ai o meu rico homem…

                                                                        António Trabulo
                                       (integrado no livro CONTOS DE CÁ E DE LÁ, a publicar brevemente)


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